Volume 1
Capítulo 2: Encontro Fatal
Em Luoyang, Shen Shining lera muitos livros do gênero Transmigração.
Um leitor troll conseguia compreender por completo os protagonistas desse gênero específico. E isso era muito, realmente muito perigoso. Os protagonistas, em suma, tinham pensamentos muito confusos sobre tudo, mas uma pequena ideia conseguia ser lúcida em meio ao caos. Ela não vagava sorrateiramente. Na verdade, ela era bastante perceptível para qualquer leitor troll; a vaga ideia do protagonista de querer desaparecer. Não morrer. Desaparecer da sociedade seria a definição perfeita.
E Shen Shining acabou desaparecendo como muitos protagonistas do famoso gênero Transmigração. Sendo enviado para aquele mundo de pessoas de aparências rústicas e passando a, inexplicavelmente, possuir o corpo de um jovem visivelmente lamentável, ele suspirou alto.
Claro, fora uma grande surpresa perceber o teletransporte de maneira tão insensível. Mas o acontecimento em si não era algo considerado meramente impossível de acontecer.
Haviam muitas teorias sobre o fluxo de almas para outros mundos, muitos livros sobre o assunto e relatos pessoais na internet.
Normalmente, relatos pessoais acabavam por vir de pessoas que despertaram do coma, então os depoimentos eram automaticamente ignorados pelos jovens que tinham interesse de acabar com suas próprias vidas para serem enviados para algum lugar diferente, longe de uma sociedade civilizada. Sim, havia muitos jovens buscando por “liberdade” através da morte. Não que eles quisessem morrer e virar adubo para a terra. Muitos queriam ceifar a solidão, a dor, o desejo decifrável de querer se manter longe dos sistemas políticos e sociáveis. Ser enviado para novos mundos, sendo novas pessoas e encontrando utopias arcaicas, poderiam ser a resposta para uma vida mais intensa, divertida e próspera.
Acreditem, haviam pessoas cansadas da velha trajetória humana: nascer, crescer e morrer. Claro, não era algo tão lacônico. Uns iriam nascer, mal iriam começar a andar e começariam a sofrer. Outros iriam nascer tendo mais sorte, seriam amados pelos pais e familiares, iriam crescer saudáveis e depois trilhariam caminhos sem espinhos. Uns iriam escolher se casar cedo e construir uma família. Outros teriam carreiras almejadas e, alguns, apenas viveriam; sobreviveriam tentando, no final de tudo, ter o que comer, ou talvez, ter um bom lar.
A trajetória humana era tão… entediante.
Insuportável.
É claro que havia muitas pessoas querendo ser teletransportadas para outros lugares. Tudo para que pudessem no final de tudo fugir do sistema, dos padrões que a sociedade impunha sobre os ombros das pessoas, fugir das leis criadas pelos poderosos que ansiavam cada dia por mais poder, dinheiro e status.
Para aqueles que queriam fugir da realidade medíocre em que viviam, a morte não era a salvação. A transmigração era uma chance para finalmente compreender como viver era magnífico. Ter a oportunidade de escapar do mundo que fora dominado por tantos energúmenos era uma benção.
Para os jovens que queriam fugir, até mesmo o inferno seria considerado um bom lugar para se estabelecer.
E lá estava Shen Shining, tirando a conclusão de que havia morrido e que, provavelmente, sua alma havia sido transferida para algum lugar esquecido por Deus. Ele, que não sabia se ria ou chorava, havia lido muitos relatos de pessoas que haviam sofrido acidentes e tiveram suas almas transferidas para outros mundos, dominando como fantasma corpos de outras pessoas, e vivendo suas vidas antes de retornarem do coma. Mas ele não tinha nenhuma noção de quem era neste novo mundo, e era óbvio que não seria possível sobreviver possuindo o corpo de alguém desconhecido.
O céu acima de sua cabeça estava parcialmente nublado e gotas grossas de chuva começaram a despencar sobre a extensa floresta grotesca. Ele começara a chorar sem hesitar enquanto andava sem pausas, perguntando-se do porquê de estar sendo castigado daquela forma tão triste.
A túnica verde-clara e o manto que usava encharcou-se por inteiro, deixando o corpo fragilizado e úmido. Os finos fios de cabelo começaram a grudar na face pálida dele e atrapalharam seu campo de visão como consequência. No entanto, fora possível ver mesmo assim que, há alguns metros de distância, uma pessoa andando em sua direção.
Só poderia ser o tal monge!
Ignorando qualquer coisa ao seu redor, começara a correr como se a vida dependesse de capturar o tal monge, para que não tivesse que apanhar outra vez do ancião; embora fugir para as montanhas fosse a melhor das outras opções, precisava compreender a identidade daquele jovem do qual possuía o corpo através do ancião, atualmente, o único conhecido de Shen Shining por enquanto.
Era melhor viver ajoelhado, do que morrer em pé!
– Ei, seu bastardo, volte aqui imediatamente! – vociferou isso com a voz bem profunda, mesmo que a pessoa estivesse caminhando calmamente em sua direção.
Correndo por conta da adrenalina, os pés acabaram por dançar com a lama e seu corpo foi, novamente, colidir-se contra o chão molhado. Se levantando logo em seguida, ele tentou remover a lama do rosto com as mãos, mas isso só fez com que a lama se espalhasse ainda mais.
A pessoa agora estava apenas há poucos metros de distância dele, observando a lamentável situação; seus olhos estavam frios, como se o dono deles não gostasse do que estava assistindo. De repente, moveu as mãos e tirou de sua manga larga e esvoaçante dois papéis de arroz, que possuíam o símbolo yin yang desenhado com cinábrio no centro, e os jogou em direção a Shen Shining. Os Talismãs Elementais grudaram frontalmente na túnica verde-clara, encharcada e suja de lama.
Com um olhar confuso, ele vira a pessoa mexer levemente suas mãos em selos lentos e, gradualmente, a túnica fina foi retornando ao verde-claro limpo de outrora.
Feitiçaria?
Shen Shining estava muito surpreso com aquilo, mas o espanto dele não conseguira distraí-lo de seu real objetivo ali. O medo de apanhar do ancião se instalara em seu pobre coração como videiras venenosas. Ele agora também sabia que poderia estar em um mundo de feiticeiros com habilidades nada científicas!
– Oi. – começou ele, avançando alguns passos instáveis. – Agradeço de coração a generosidade, mas educadamente peço que pague os dois taéis de prata que me deve.
Estendera as mãos diante da pessoa a sua frente e, só então, notara quão alta ela era. Tratava-se de um jovem muito esbelto, de semblante com traços extremamente proeminentes, que chamaria a atenção de qualquer jovem dama com bons olhos. O hanfu de alta qualidade e o manto grosso de cor azul marinho que usava estavam perfeitamente limpos e sem traços de poeira, apenas carregavam umidade por conta da chuva. A pele dele era tão branca, similar a um jade encantador que faria qualquer pessoa lançar diversas olhadas obscenas sobre ela. E embora houvesse um embrulho em suas costas largas, como se algo pontudo estivesse sendo protegido ao ser coberto por panos de seda brancos e limpos, não afetava em nada a aparência elegante que portava.
Ao acabar reparando muito no cabelo longo e preto do jovem, que estava solto, caindo até a cintura vigorosa, Shen Shining pôde compreender mais daquele mundo. Assim como aquela pessoa, Ah-Shen também possuía cabelos longos, o que foi símbolo de masculinidade no tempo da onça. Hodiernamente, Shen Shining estava vivendo em tempo remoto, onde cortar o cabelo iria significar perder sua honra como homem. E aquele jovem guerreiro viril diante dele parecia ter muito orgulho de sua juba, pois havia até mesmo uma mecha fina trançada na lateral de sua cabeça, pousada em um dos ombros, como os muitos penteados dos guerreiros vikings e dos homens da Dinastia Ming.
Espere, aquele jovem possuía cabelo comprido? Mas monges budistas eram, respeitosamente dizendo, calvos!
Shen Shining engoliu em seco algumas vezes e conseguiu fitar com custo os olhos frios da pessoa em sua frente.
– Puxa, não me diga que você não é o monge que está devendo dois taéis de prata para um senhor ranzinza? – Obrigou-se a sorrir dessa vez, estando bastante envergonhado.
– Não. – Os lábios finos da pessoa se contraíram com desgosto evidente.
Oh não, Shen Shining iria morrer pela segunda vez!
– Perdoe este pobre tolo então. – Sentira na hora que a aura daquela pessoa não era nada boa. Ele precisava correr o mais rápido possível, e questionou-lhe uma última vez: – Viu alguém careca passar por você em sua trajetória na floresta?
– Sim, um monge.
– Por favor, mostre-me a trilha dele!
– Nenhuma trilha foi formada até o momento.
– Não? Então onde está o monge?
– Ele caiu. – O jovem virou-se e apontara para uma árvore alta. – E está deitado lá.
– Por que ele caiu? – A todo vapor, Shen Shining questionava.
O monge havia sofrido um ataque cardíaco e morreu depois de não pagar sua conta; isso seriam as divindades fazendo justiça pelo velho ancião?
– Desmaiou quando eu atingi o rosto dele com um soco. – relatou o jovem sem demonstrar nenhum tipo de emoção no semblante inexpressivo.
– …
Shen Shining escolheu ficar estático, apenas esperando sua hora chegar novamente. Ao menos, ser assassinado seria uma morte mais honrada do que comer pizza envenenada!
O jovem que vestia hanfu de alta qualidade observou-o ficar rígido e retirou-se em passos calmos, indo até a direção em que havia apontado outrora. Depois, retornou e colocou suas mãos na frente daquele tolo apombaiado. Assustado, Shen Shining apenas ficou em mudez.
– Seus taéis. – disse o jovem entregando dois pedaços de prata a ele. Logo depois de praticar a ação, retomou com o antigo trajeto que trilhava.
Shen Shining observou os malditos pedaços de prata jacentes no centro das mãos em conchas e soltou longos suspiros de alívio. Ele conseguiu concluir uma das primeiras missões de sua nova vida patética. Mas agora, já tinha arrumado outro problema; não sabia retornar para a residência daquele ancião ranzinza…
– Irmão! – Sem pensar muito, virou-se e vociferou em busca de cessar os passos daquele jovem de vestimentas azuis escuras. – Saberia me informar a direção de onde fica uma residência de dois andares que tem muitas plantas nas varandas?
– Está referindo-se ao chalé do Mestre do Chá?
Aquelas palavras soaram entredentes da boca do jovem e, a atmosfera que já estava ruim, pareceu piorar.
A palavra “chá" fez com que a mente do novo homem transmigrado se recordasse das pessoas que estavam no salão quando o ancião o carregava. Elas pareciam estar comendo e tomando alguma coisa, e o cheiro refrescante e doce era similar ao chá feito a partir da Camellia sinensis!
– Sim, estou, eu moro lá! – disse; talvez o tom tenha soado desesperador. – Minha memória é muito ruim e eu não me recordo do caminho para chegar até minha residência.
– Sua residência?
– Isso.
– Estou indo para este estabelecimento. – O jovem não esperou por uma resposta e apenas começou a caminhar novamente. – Se quiser acompanhar-me, fique a três passos de distância pelo menos.
– Certo…
Sem querer protestar por conta da restrição, Shen Shining começou a segui-lo sem pestanejar, sempre mantendo uma distância segura e confortável para ambos. No meio do caminho, os pés dele passaram a se esforçar ao máximo para tentar alcançar o jovem. Mas, assim que conseguisse esse feito, a distância entre eles aumentava significativamente. Era como encher um balde furado e Shen Shining logo desistiu, aceitando que aquela pessoa era quem estava ocasionando aquilo.
– És o Mestre do Chá? – De repente, o jovem o questionou.
Shen Shining ficou surpreso por aquela pessoa, depois de tanto tempo em silêncio, estar puxando assunto.
– Eu sou? – Para si realmente fora uma pergunta, mas acabou soando como uma afirmação para o jovem circunspecto.
A chegada naquele mundo peculiar resultou apenas em socos no estômago e zero informações para Shen Shining.
– Seu irmão mais velho, Shen Feng, sabe onde ele está? – O jovem sempre perguntava mantendo o olhar sombrio, sem parar de andar ou olhar para trás.
– Não sei, moço. – Lhe respondera.
A conversa cessou ali, porque eles dois chegaram à clareira onde ficava o chalé de dois andares. Cochichos de conversas animadas e a melodia do guqin podiam ser escutados de longe e, da chaminé da residência, nunca sobresteve de sair fumaça, indicando que havia muitos clientes ainda.
Shen Shining se encolheu quando vira o ancião passar pela vitrine. Seu corpo ficou rígido e ele correu para se esconder atrás da pessoa que acabara de conhecer.
– O que o Mestre do Chá está fazendo? – questionou o jovem, reprimindo violentamente um gesto de confusão.
– Ele vai me bater, me acertar, me chutar, me espancar. – disse Shen Shining, querendo descobrir onde estavam os direitos humanos naquele mundo quando respondeu.
O jovem retraído suspirou e continuou indo em direção ao chalé, sem mostrar sinais de se importar com o rapaz atrás dele, usando-o como escudo humano. Quando resolveu abrir a porta sem hesitar, as conversas dos clientes foram interrompidas pelo rangido da madeira decrépita da porta, e os olhares se voltaram para o novo freguês.
– Ah-Shen, você finalmente retornou!
Quando escutara aquela voz grave retumbar pelo salão lotado, o homem transmigrado já havia fechado os olhos, esperando socos e pontapés. Mas eles nunca vieram. O ancião não se atreveu a ir para cima dele com aquele jovem o protegendo — sem ter a mínima intenção de executar tal ato bondoso.
– Você… – murmurou inconscientemente o ancião.
– Hum? – Shen Shining resolveu abrir os olhos e vira que o rosto do ancião estático estava pálido. Resolveu aproveitar o momento de estupor dele para pousar os taéis de prata em suas mãos enrugado. – Aqui, missão cumprida.
– …
O ancião permanecera em silêncio e lançara olhares indiferentes aos taéis.
– Ah-Shen, vá para a cozinha preparar o chá. – tornou a falar. – E esse seu amigo pode sentar-se onde quiser.
O ancião agarrou com força os ombros de Shen Shining, enquanto o jovem de vestes azuis andava silenciosamente pelo salão, procurando o lugar mais afastado dos outros clientes para que pudesse se sentar, enquanto o levado estremecia por presumir que apanharia outra vez.
Quem poderia imaginar que o ancião realmente o levaria até a cozinha, ainda insistindo que ele fizesse o chá?
Primeiro, fora preciso lançar de maneira preguiçosa as folhas perfumadas de loureiro na panela de bronze grossa sobre o fogo alto do fogão a lenha e, quando as folhas estavam bem torradas, adicionar três copos de água, dez cubos de açúcar e, por fim, deixar o chá de louro na panela até borbulhar.
O mundo hodierno era extremamente diferente do tecnológico! Pelo que pôde-se perceber, no atual mundo não existia microondas e, naquele passado não muito distante, ele só esquentava suas deliciosas comidas naquela coisa fabulosa criada para ajudar os preguiçosos. Motivo esse, o fez ser tão desleixado na cozinha.
Ele despejou o chá em um bule delicado de porcelana, e caminhou até o salão procurando pela pessoa de semblante frio. Bem afastado de todos e perto das vitrines abertas, lá estava, sentado com as pernas dobradas sob a mesa de centro exótica, observando a paisagem à fora.
Shen Shining pegou uma xícara e pousou em sua frente, enquanto despejava o chá lentamente no recipiente, para não respingar nas mãos do jovem. Após finalizar essa ação simples, aguardou pela menção do outro em pegar a xícara, mas ele só fizera questão de observa-la.
– Beba rapidamente. – Shen Shining incentivou-o, dizendo: – O tempo está frio e o chá irá esfriar. Este é meu agradecimento por você ter me ajudado com os taéis de prata.
A cabeça do jovem airoso aquiesceu com lentidão. Em silêncio, pegou a xícara quente e bebericou sob o olhar atento do tolo.
– Bom, bom. – Shen Shining descansou as mãos em sua cintura dolorida. – Isso irá esquentá-lo.
Antes que o líquido extremamente doce, que ainda por cima possuía folhas chamuscadas boiando sobre a superfície, com cubos de açúcar mal dissolvidos que incrustavam no céu da boca, da xícara esvaziar-se por completo, o jovem tossiu no meio do processo e só pôde finalizar o chá para que a irritação na garganta passasse.
– Obrigado. – Agradeceu com os lábios umedecidos pelo chá; os cílios volumosos dele tremeram levemente, sem motivo aparente.
– Você quer mais chá? – Shen Shining ofereceu, sentindo afinidade e gratidão por seu salvador.
Houve silêncio sucinto, até o jovem proferir baixo sua resposta:
– Não.
Shen Shining preparou-se para instigá-lo a beber mais chá pela segunda vez, quando um grito interrompeu suas palavras:
– Mestre do Chá!
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