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Capítulo 1

Volume 1

     Capítulo 1: Mestre do Chá 

Num lugar muito distante, o vento abafado varreu o pico de uma montanha alta, povoada por muitas pessoas humildes, e abanara o capim amarelado e seco, fazendo com que os camponeses próximos tivessem que segurar seus chapéus surrados de palha, para que os cujos mencionados não fossem carregados pela ventania setentrional. 

Talvez fosse o fim do verão, ou o começo dele. Não era possível saber ao certo, porque o sol fazia dezenas de gotículas brotarem nas testas franzidas dos camponeses, enquanto, do céu claro, caia desenfreadamente flocos prateados de neve. Talvez fosse o começo do inverno, ou o fim dele. Mas não era possível afirmar o solstício, porque a haitang mais próxima do povoado humilde na montanha estava infestada de belas flores rosas. Talvez fosse primavera então? Impossível, logo atrás da haitang viva e próspera, havia muitos carvalhos secos. O outono estava marcando presença naquele terreno de clima inóspito, junto com a primavera, o inverno e o verão. 

– Ei, velho Xie, nosso povoado parece estar estranho hoje. – disse um jovem que segurava duas enxadas; a sua e a de seu pai. – Quase nunca chove em nossa terra, mas veja, o tempo está se fechando no céu, querendo ocultar nosso maravilhoso sol novamente. 

Ele apontara o dedo para o céu e o velho Xie, com olhos curiosos sob o chapéu de palha, adicionou: 

– Hua Yuan, a chuva nunca é um bom sinal por aqui. O que diabos está acontecendo? É difícil chover tanto no norte do Centro Humanoide, quanto em qualquer outro ponto cardeal e colateral. Mas hoje de manhã choveu, e agora o tempo se fechou outra vez. 

– Ouvi dizer que há uma antiga profecia sobre as chuvas. O líder Go Xuan disse que os primórdios do Oeste Demoníaco escreveram em hieróglifos que as chuvas arrastam almas perdidas de um outro mundo perdido. 

O jovem falava tão rápido quanto feijões caindo em um tubo de bambu, enlouquecendo o velho Xie. 

– Oh, este homem é formidável. – disse ele, começando a mastigar o capim seco em sua boca. – Uma pena que seja o “cachorrinho” daquela líder do Norte Alquimista. Quem em sã consciência iria vê-la com olhos luxuriosos? 

– Haha. – O jovem gargalhou com vontade. – Se nem mesmo o imperador do nosso território conseguiu resistir aos encantos da líder do Norte Alquimista, quem dirá nós? 

– Eu resistiria! – vociferou o velho Xie com firmeza. – Meus bons olhos devem ser direcionados apenas para a minha esposa. Agora, segure a enxada com força e começa a capinar o capim desta terra que tornou-se tão inóspita depois de tanto plantio! 

– Seus bons olhos estão defeituosos, pai. – debochou o filho. – Nossa terra não é inóspita. 

– Ah, que jovem insolente. Procurando discordar dos mais velhos com tanta arrogância. 

O velho Xie agarrou a enxada na mão do jovem e começou a capinar o terreno, fumegando de raiva pelas orelhas enrugadas. 

De inóspito, aquela terra do povoado realmente não poderia ser chamada, já que havia cem residências simples perto do rio de água corrente e quente. Havia vida humana e animal naquele lugar exótico. E, descendo a trilha da montanha, você poderia encontrar algo ainda mais surpreendente que o povoado de clima temperamental. 

Um chalé de dois andares.

Era como se os deuses celestiais, ou o próprio Buda tivessem o construído. A clareira próxima poderia até ter sido o local onde o Príncipe Sidarta meditava e praticava o mantra no começo de sua jornada para atingir o Darma[1].

O som fascinante das cordas de um guqin sendo dedilhadas por mãos leves e risadas suaves podiam ser ouvidas saindo do estabelecimento. Sua única sacada lateral estava dominada por videiras que cobriam até mesmo a pequena porta da residência; havia uma placa branca, com toques amarelos claros sobre si, cujo os ideogramas escritos eram esplêndidos, acompanhados por duas xícaras brancas desenhadas ao lado. Além disso, tais ideogramas legíveis na placa indicavam que aquela residência peculiar pertencia a alguém conhecido como “Mestre do Chá”, e do local uma energia pura emanava.

Como possuía muitas vitrines grandiosas, podia-se vislumbrar que o salão da residência de estava lotado por seres harmoniosos, risadas encantadoras, belas mulheres, e músicos excepcionais. Além disso, a energia pura, quase de outro “mundo”, provinha do segundo andar. 

Mas como seria possível para aquelas seres sentirem algo tão especial sobre suas cabeças ocas? Eles não poderiam ter o prazer disso, pois nada era o que aparentava ser. 

O estabelecimento do “Mestre do Chá” era fabuloso, diferente dos seres que diariamente frequentam o local. 

Os ditos humanos viviam em uma sociedade completamente superficial em qualquer mundo ou época. Eles eram movidos por seus padrões estéticos, sociais, religiosos e sexuais. E as belezas sensuais e voluptuosas que quase jaziam seminuas sobre as mesas do salão eram, em sua maioria, mais interessantes que a energia estrovenga vinda do segundo andar.  

Os nativos do Centro Humanoide eram escórias sem salvação, e aquela energia pura não deveria ser sentida por eles. Porém, coincidentemente, alguém a sentiu. Ele, no entanto, estava longe de ser uma escória, mas precisava de salvação. 

– Cultivei flores nas crateras da lua, dancei nas nuvens antes da tempestade começar, me despi da minha essência para te agradar, fiz tudo por você, tudo para depois você me largar [2]. – cantarolou a cigana sobre a mesa central do chalé. Rodopiando como um pião, sua túnica açafrão acompanhou os movimentos, acabando por revelar os pés descalços dela. – Moldei meu coração de barro e me refiz todos os dias. Você o quebrava sempre que queria, mas recolhia os cacos como se fosse o bastante para me ajudar. Até que incendiei meus jardins, passei a dançar com relâmpagos, arranquei as asas das minhas borboletas e amaldiçoei estrelas cadentes.

– Belíssima voz, Chu Jiang! – Triunfantemente, ditaram os mais formidáveis homens dentro do chalé. 

Chu Jiang, a cigana de cabelos prateados e crespos agradeceu quando curvou-se sutilmente. Ao erguer a cabeça, os olhos cinza-aço passaram a olhar com atenção um velho ancião próximo a mesa de madeira. 

– Ancião, onde está seu filho mais novo, Ah-Shen? – perguntou ela, iniciando uma conversa formal com ele. – Não o vejo desde o meu simples e cansativo regresso do Sul Élfico. 

– Oh, Chu Jiang… – começou o ancião, tenso aos olhos dela. – Ah-Shen está descansando. 

– Você o espancou novamente. – Com superioridade, Chu Jiang afirmou. – Ancião, ele quase morreu da última vez. Nem mesmo os meus feitiços foram capazes de salvá-lo. Pelos deuses, eu deveria procurar por Shen Feng e Na-Yiongli, e dizer a eles que o irmão mais novo apanha frequentemente? 

O ancião pareceu engolir em seco. 

– Não incomode os meus filhos! – pediu aos berros. – Shen Feng está ocupado servindo o Imperador Zhou e Na-Yiongli tornou-se pai de família ao adotar aquela sua elfa bastarda. Apenas Ah-Shen é o desgosto da família Shen! Primeiramente, ele nem deveria ter recebido o meu sobrenome, já que não tem o meu sangue! 

Os lábios de Chu Jiang pareceram vibrar; algo como uma risada queria escapar daqueles lábios carnudos e belos. Antes que qualquer outra coisa pudesse escapar de sua boca, um alvoroço se iniciara dentro do chalé. 

– Ancião, aquele monge budista que o senhor estava servindo chá acabou de sair correndo sem pagar a conta dele! Eu vi tudo! 

– Eu também! 

– Aquele burro careca deveria ser engolido por um dragão! Quanta petulância! 

A expressão do velho ancião tornara-se feia ao escutar os clientes gritarem. Ele lançou vários olhares assassinos para Chu Jiang e presumiu que aquela mulher de orelhas pontudas estivesse segurando uma risada e ignorou-a ao passar reto por ela. Contornou o salão e subiu os vários degraus da escadaria caracol. Em uma velocidade incrível, quase impossível para um idoso, ele parou diante da única porta que havia no segundo andar do chalé e a chutou. 

– Ah-Shen! 

Assim que adentrou no cômodo, pôde encontrar o que procurava furiosamente. 

– Acorde imediatamente! 

Vociferando, ele deu vários passos para frente, enquanto encarava com olhos maldosos o que estava diante dele; era de natureza humana a figura deitada sobre a cama caseira feita de palha. Com as pernas escarrapachadas, era possível ver furos no tecido fino e surrado que a figura masculina vestia. Um tribufu, além do mais, com o corpo cor de jade cheio de hematomas feios e roxos. 

– Acorde, seu bastardo de merda!

Não era possível sentir a energia estrovenga, embora pura, que aquela figura masculina e jovem emanava. Nem mesmo era possível ver as sobrancelhas escuras sendo franzidas levemente, o nariz, cujo estava sujo com sangue seco, se contorcendo, ou os lábios sendo mordiscados. O ancião estava muito furioso para notar isso. Ele levantou a perna e desferiu-a sobre o estômago do tribufu. Então, um formigamento indescritível pudera ser sentido na carne dolorida, junto com o gosto metálico de sangue na boca. 

Para Shen Shining, essas dores inespecíficas e o gosto estranho foram as preliminares para resolver acordar de seu casual cochilo após comer um pedaço delicioso de pizza. Embora ainda estivesse em estupor por causa do sono, pôde despertar por completo quando escutou ruídos insuportáveis e, logo em seguida, gritos raivosos e sons estridentes de coisas de porcelana sendo quebradas. 

Li Yan já chegou em casa? 

Por que ele está fazendo toda essa barulheira? 

Inesperadamente, quando resolvera abrir os olhos após ter questionado, os olhos do jovem que jazia sobre a cama caseira abriram-se também. As mãos já espalmadas e trêmulas largaram as contas de oração que seguravam. Depois disso, uma dor agoniante pareceu atacá-lo, pois soluços dolorosos e bem baixinhos escaparam de seus lábios secos quando Shen Shining resolveu erguer-se descortinando tudo ao seu redor com a respiração falha. 

Ele não entendia o porquê da respiração que o pertencia estar tão acelerada, como se fosse um búfalo que tivesse percorrido uma maratona. Por que o seu corpo estava tão dolorido? Por que algo quente estava deslizando por seu maxilar? Ele virou a cabeça para lá e para cá em busca de Li Yan, mas encontrou apenas um homem velho de cabelos grisalhos diante dele; este, que estava com o rosto vermelho pela raiva, levantou a perna e desferiu dois grandes chutes no estômago do jovem confuso. Então Shen Shining vociferou consternado: 

– O que está acontecendo?! Fui sequestrado, fui sequestrado! 

Depois dos chutes, sentiu necessidade de encolher-se para se proteger do homem velho. E o jovem deitado, com o rosto cheio de hematomas roxos, também se embolou como uma anaconda abraçando a sua presa.

– Levante-se, seu desgraçado imundo. Corra atrás daquele monge careca! – O ancião não deu ouvidos aos gritos do jovem, intimidado-o. – Ah-Shen, você está mordendo a mão de quem o alimentou?

– Ah-Shen? – sussurrou o jovem, cuspindo sangue logo depois. – Meu nome é Shen Shining!

– Vamos trabalhar, maldito! – O ancião fingiu não ter escutado aquelas palavras e agachou-se tendo fúria desenfreada. 

Shen Shining sentiu o corpo sendo levado pelas garras dele e percebeu que havia sido erguido por um senhor de idade! 

– Como pode um velho ter tanta força? – sussurrou abismado, sem força alguma para impedir aquilo de acontecer. – Ilógico! 

Ele vislumbrava os arredores com desespero, enquanto o ancião o carregava escada abaixo, como se um saco de esterco estivesse sobre o ombro másculo dele. No salão, 
as pessoas que estavam se alimentando, enquanto ouviam a cigana Chu Jiang cantar. Assim que viram aquele velho carregando o jovem, ficaram surpresos com a cena. 

– Olhem, o ancião está carregando o Mestre do Chá! – vociferou um, a todos sorrisos. 

– O jovem mestre está se divertindo muito com o pai. Eu o invejo! – vociferou outro. 

– Me coloque no chão agora! – Shen Shining, horrorizado com a situação, fez o pedido sentindo dor por todo o corpo e com a voz rouca e, de repente, percebera que não possuía mais voz de taquara rachada! No momento seguinte, ainda pálido como papel, passou a tatear o rosto como se estivesse louco ou com sarna humana. 

As sobrancelhas dele estavam ralas demais!  

Os lábios agora eram tênues! 

A ponta do nariz era um pouco empinadinha! 

As bochechas eram fofas! 

AQUELE NÃO ERA O SEU ROSTO! 

Ilógico! 

– Vá, corra imediatamente atrás daquele monge que saiu sem pagar suas despesas! – vociferou o ancião.  

As pessoas presentes assistiram o espetáculo em silêncio, com olhos atentos àquilo; houve lampejos de diversão em suas íris.

– Você ficou o dia inteiro dormindo e finalmente está na hora de trabalhar. – continuou o ancião, andando em passos rápidos. 

– Mas, mas, ah, ah, ah! – gaguejou um Shen Shining de voz rouca, para depois vociferar histericamente. 

O ancião lançou aquele pobre jovem de vestes verdes-claras no gramado quando chegou do lado de fora do chalé. Sentindo que sua cabeça havia colidido com o solo duro, Shen Shining soltou um grande grito de dor. 

Nunca, em toda a sua vida, ele havia sido tratado de tal forma!

– Ele me deve dois taéis de prata, vá buscar. – O ancião olhou com desgosto para o jovem ainda caído no chão. – O caloteiro adentrou a floresta, em direção ao Norte Alquimista. 

Shen Shining teria xingado aquele velho homem até a morte, se não fossem pelos fatos recentes; ele estava em algum lugar desconhecido, possuindo um corpo estranho e diante de um homem agressivo que poderia matá-lo a qualquer momento. E, mesmo não compreendendo nada, levantou-se com muita dificuldade e encarou exatamente tudo ao redor. Seus olhos pareciam não estarem acostumados com a claridade e arderam ao ver a densa floresta de árvores altas à sua frente. 

– Se não conseguir fazer nem mesmo isso, então não precisa retornar para casa. – emendou o ancião. – Ah-Shen, isso é para seu próprio bem. Você acabou de completar vinte e três anos e precisa aprender a se cuidar sem precisar da ajuda de seus irmãos mais velhos. Me traga os taéis, e deixarei você ler as cartas que Na-Yiongli lhe enviou há algum tempo atrás. 

Shen Shining ignorou as dificuldades e a dor em sua garganta para que pudesse perguntar com receio: 

– Mas para onde fica o norte? 

O ancião não lhe respondeu de imediato, apenas apontou o dedo grosso em direção à floresta e virou as costas, adentrando no chalé sem expender mais nenhuma palavra. 

Shen Shining sentiu algo quente tomando conta de seu peito e, quando abriu a boca, uma grande quantidade de sangue coagulado fluiu como uma cascata dos lábios dele. Ainda tossindo sangue por conta dos ataques furiosos do ancião, ele se limpou e levantou-se, segurando seu estômago com força. 

– Onde raios eu estou?! – Começando a chorar, caminhou na direção em que o ancião havia apontado. – Maldito Li Yan! Eu o amaldiçoo-o, eu o amaldiçoo-o, eu o amaldiçoo-o!

“Quem diabos coloca veneno de rato em um pedaço de pizza?! Eu morri e fui transmigrado por sua culpa, maldito Li Yan!” pensara, percebendo finalmente o que havia acontecido.

Sim, ele havia sido transmigrado!

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1- Darma é um conceito-chave com múltiplos significados nas religiões indianas - hinduísmo, budismo, siquismo e jainismo. Não há tradução de uma única palavra para "darma" nas línguas ocidentais. Wikipedia

 2- Poema de Noah Souza em Shared Abyss

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